11.9.10

Anedota de botequim

Cosme Ferreira

Como tinha a quarta de folga, resolvi beber na terça. Um trabalhador merece descanso vez por outra. O destino, já o traçara no dia anterior: Bar de Renata, cuja fama decorre, sobretudo, do picado de porco feito pela proprietária do estabelecimento.


Subi no ônibus da linha 37. A mesma paisagem urbana – e insossa – de sempre: quatro passarelas, três shoppings, IFRN, 16º RI, Escola Doméstica, Distrito Naval, Maternidade Januário Cicco, Escola Estadual Anísio Teixeira, Colégio Imaculada Conceição. Quinze minutos de trajeto. Desci na parada da C&A, na Avenida Rio Branco, atravessei a Praça John Kennedy e emburaquei no Beco da Lama. Percorridos poucos metros, divisei a figura de Pedrinho, nanico metido a sabido, filho de Renata, servindo às mesas. A espera do beijo álgido da cerveja crepitava.


Gente ligada às artes e à cultura de maneira geral frequenta o Bar de Renata. Ademais, tem aqueles pinguços anônimos que para lá vão religiosamente. É, na realidade, uma miscelânea de caras, bocas, olhares e palavras. Gente de tudo quanto é tipo, condição, semblante. A lufa-lufa das mesas de Renata é sinfonia para meus ouvidos.


A Brahma gelada não demorou a chegar. Desculpem-me os bebedores de outras cervejas, mas bramota é bramota. Ouro líquido fermentado que, por fugaz instante, permite à língua o orgasmo. Puro deleite! Em seguida, veio o tão famoso picado de porco, uma iguaria da culinária regional; devorei-o sem ao menos pestanejar. Bacanal gastronômica! No dia seguinte pagava o pato, a me contorcer de dor sobre o vaso sanitário, numa caganeira digna de figurar nos anais de Clio.


O tempo ia-se devagar, por causa da conversa insípida de Pedrinho, que se desenvolvia concomitante ao atendimento aos fregueses. Com sua noção de gramática recreativa, ele acabara de corrigir um suposto solecismo cometido por mim. – O certo não é “bater continência”, e sim “prestar continência” – não adiantou eu lhe explicar a questão da variação linguística, que hoje os linguistas não consideram mais a noção de certo e errado, o que vale é o princípio da adequação e da inadequação, que em mesa de bar a gente ignora a tão esotérica norma-padrão, nada disso funcionou. Para justificar a sua erudição nos ditames gramaticais, ele foi até buscar um volume de Sacconi que esmorecia, empoeirado e encardido, num dos compartimentos do balcão do bar. Muito bonito para um homem de letras como eu falar errado! Imagine só a qualidade das matérias que eu escrevia para os jornais locais!


Antes tivesse eu tido a companhia de Renata e sua filha, mas ambas não estavam no bar. Aquela saíra para fazer alguns pagamentos; esta fora à casa do namorado, o professor Berlim, insigne no ofício e no copo – sorte dele possuir a bela mulata de sorriso espontâneo e fácil, fonte de inspiração à verve de Amir Massud, um dos vates mais respeitados do Beco, também cachaceiro, é óbvio.


Uma mão no meu ombro. Que susto danado! O estroina do Julião chegou de fininho. Fomos companheiros de faculdade. Ô época boa! Os anos se passam tão rápido que mal nos damos conta do envelhecimento. Ele foi logo pedindo um copo, vivaz e irrequieto. Os assuntos logo afloraram: literatura brasileira, história, filosofia da ciência e, é claro, mulheres e pequenas safadezas.


Conversa boa, entretanto, é fogo-fátuo. Julião foi-se rápido: tinha um compromisso impreterível lá nas Quintas, no Cabaré de Ximbica. Antes de ir, porém, ele chamou minha atenção para a glutonia ocular de duas moças acompanhadas em nossa direção. Se não tivesse nada garantido me faria companhia, com certeza.


Observei de esguelha os olhares – Julião não estava errado. Os dois marmanjos que serviam de acólitos às mocinhas pareciam um cu exercendo o seu ofício, mas certamente bancavam comida e bebida. Como me aproximar daquelas duas rosas prestes a desabrochar?


Meu pensar foi interrompido por Pedrinho, que colocou outra bramota sobre a mesa. Bebi mais um gole. Meu reservatório de mijo estava com a boia avariada. A sirene fisiológica fez-se ensurdecedora. Corri ao banheiro. Ao atentar àquele ambiente úmido e sujo, quase dava meia-volta. Mas que tartufaria! Há tanto tempo que eu amiudava aquilo ali, nem eu me lembrava mais. Esqueci o fricote. Fiquei face a face com o bojo. Lá jazia um tolete gordinho, bem cevado, que aparentava umas oito horas de vida (deve ter ingerido muita água, o pobrezinho). Resolvi fazer-lhe perfurações circulares, usando meu jato urinoso. Quase o dividi em dois. Sepultei-o com o fluxo ímpio da descarga.


Alguém à porta. Batidas e mais batidas no meu pé do ouvido. Gente impaciente tem em todo canto. Estarrecido fiquei quando a abri. As rosinhas cheirosas postavam-se diante de mim. As duas estavam protegidas pela pequena parede do lado de fora do banheiro, local onde ficava a pia (o que não denunciava seus movimentos aos paspalhos que as acompanhavam). O mais inaudito, contudo, foi o empurrão que elas me deram. Quase lasquei meu quengo na borda daquele bojo. Fechou-se a porta rapidamente, verdadeiro rompante. Juro por Deus que essas mulheres atentaram contra mim! Vi-as mijar! Elas sentiam um prazer mórbido ao fazer aquilo na minha frente. Gemiam, inclusive. Sei lá. Mulher, quando toma umas, mostra todo o seu lado obscuro, escória que fica estocada no porão do cérebro, mas que vem à tona com a desinibição do álcool. Fiquei até com medo, confesso. É o despique do sexo feminino contra milênios de opressão masculina!


Digo despique porque, ao terminar de mijar, elas se entreolharam e riram a torto e a direito – mas uma risada esganiçada e tresloucada. Em seguida me empurraram novamente. Danei-me num canto aguado de urina. Saíram do banheiro como se nada tivesse ocorrido – tudo isso em questão de átimos. E eu que pensei que depois daquele espetáculo estrambótico rolaria um coito! Fiquei um tempo deitado naquele chão imundo a pensar a respeito da natureza feminina. Lembrei-me da minha ex-mulher, de suas renitentes querelas e da polpuda pensão alimentícia.


Quando voltei a mim, Pedrinho estava agonizando de rir, na porta do banheiro, às minhas custas – filho de uma égua mal parida! Ria feito uma hiena doida. Eu, todo mijado, mandei-o à puta que o pariu. Sacana! Da mesa na qual estavam, as duas marafonas sorriam sarcasticamente. Meu desejo era sodomizá-las.


Pedi a conta. Fui para casa hibernar. Hibernei feito um urso obeso no inverno. Fui sacudido pelo despertador, que metralhou sua maldita carga sonora no meu quengo. A barriga já dava sinais de dilapidação. Quando liguei a televisão – pasmem! –, as duas vadias que tinham me empurrado estavam ladeando os assessores do governador, na coletiva de imprensa, muito maquiadas e cheias de pose. Pensei em voz alta: “Este país é mesmo um prostíbulo!” E mudei de canal. E corri para o banheiro.

Nenhum comentário: